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PSYCHOMEDIA
TERAPIA NEL SETTING INDIVIDUALE
Psicoanalisi in America Latina



Questões relativas à “cura”, à “melhora”, à normalidade e à anormalidade: Psicanálise e Psicoterapias

por Claudio Castelo Filho


I

Em um atendimento de um paciente ele relata-me um episódio ocorrido com um amigo seu que sofreu em um curto espaço de tempo dois sérios revezes de saúde precisando ser submetido a mais de uma intervenção cirúrgica num intervalo muito breve. Conta que o amigo sempre foi alguém que aparentemente lidava com suas dificuldades de modo corajoso. Desta vez, no entanto, foi chamado pelos familiares dele para que desse ao amigo um apoio “moral” porque ele entrara em uma espécie de colapso, com crises intensas de choro. Compareceu ao chamado e ficou tentando junto com a família confortar o doente, mas percebeu que pouco podia fazer, pois o amigo continuou consternado, a despeito dos esforços que fazia para mostrar-se “melhor” para meu cliente. Este último ressentiu-se de o amigo comportar-se de modo mais reservado do que de costume.
Ponderei com o meu cliente que parecia-me natural que diante de tamanhos infortúnios o seu amigo pudesse sofrer uma depressão e sentir-se desalentado – que esta seria uma situação normal. Por outro lado, há a idéia de que ficar triste ou desalentado seria o equivalente a uma doença e levaria a que ele e os familiares do amigo se esforçassem por curá-lo, mudando seu estado de espírito.
Cogitei e falei com o meu cliente sobre a possibilidade de o amigo mostrar-se mais reservado com ele porque lhe seria muito penoso ter de, além de sofrer a própria consternação, a própria dor, precisar produzir para os que o circundavam um estado de aparente melhora, pois via a angústia e a pressão dos que o rodeavam para que se mostrasse melhor ou curado.
Esta conversa estava associada a expectativas do paciente de que eu o “curasse” de sentimentos que considerava muito penosos e que, a meu ver, pareciam-me ser bastante naturais dadas certas circunstâncias de vida dele (sérios problemas familiares) naquele momento. Dou-lhe a entender que consideraria qualquer abordagem minha no sentido de curá-lo dos sentimentos penosos que sofria como sendo uma tentativa de mutilação – pois aquilo era natural, era da sua natureza, dentro daquele contexto em que ele próprio estaria vivendo situações bastante doloridas – sendo assim, o natural, o normal, era mesmo sentir-se dolorido, sofrido.

II

Num outro exemplo, uma outra pessoa que atendi foi acometida por uma gravíssima doença que levou-a a morte em muito pouco tempo. No momento da descoberta ela ficou desolada e muito perseguida. Dizia-me que toda sua família se esforçava para que ela se mostrasse altaneira e combativa diante da ameaça. Recriminavam-na por mostrar-se prostrada e amargurada. Ao considerar a seriedade da ameaça e a gravidade do contexto exposto, pensei que seria surpreendente que se mostrasse de outro modo, pois o choque era realmente de monta (eu mesmo, não sendo quem estava doente, experimentei um grande impacto ao ser informado e fiquei bastante mobilizado, posteriormente, com seu falecimento). Não me cabia ser mais um a tentar levantar-lhe o moral, mas, pelo contrário, ser alguém que a ajudasse a acolher suas dores e sua depressão –aceitando-as.

III

Em outro episódio lembro-me de uma jovem mãe que se torturava por não dar a seu bebê a atenção que julgava que ela devia ser capaz de proporcionar-lhe. Sua expectativa era a de nunca se aborrecer e nem de ficar de mal-humor nas tarefas que tinha para com ele.
Minha apreensão foi a de que a paciente esperaria de mim algum tipo de descompostura por não ser capaz de toda a disponibilidade e tolerância em relação ao filho, que, segundo sua vivência, ela deveria possuir. Eu, o analista, certamente teria as aptidões de que se julgava desprovida e teria um direito natural de desprezá-la por conta de suas limitações. Por outro lado, ela esperaria que seu contato comigo viesse a dotá-la de meios para tornar-se onipotente e onisciente, tal como eu próprio seria, na sua idealização.
Ponderei com ela de que era útil e favorável que uma mãe pudesse ter condições emocionais suficientes para não deixar a vida do bebê mais angustiante do que naturalmente já é. Não obstante, este parâmetro, não pode ser uma obrigação moral, pois cada mãe só pode oferecer a seu filho aquilo que dispõe.
Considero ser um problema estas campanhas de amamentação ao seio que possam colocar como imposição moral a obrigatoriedade deste tipo de aleitamento. Para muitas mulheres esta tarefa pode ser extremamente angustiante de maneira que o resultado pode ser muito mais desfavorável do que se a amamentação fosse feita por meio de mamadeiras. O terror experimentado pelas mães, que não possa ser respeitado, poderia levar a maiores danos psíquicos para ela e para o seu bebê como conseqüência.
Disse à paciente que também podia ser útil o bebê dela poder verificar que ela era apenas uma mulher comum e que sentimentos de ódio, irritação, exaustão, limitação, pudessem ser aceitos por ela – que poder vivê-los sem querer extirpá-los poderia ser uma atitude mais saudável do que a de forçar a barra para se mostrar disponível para o que realmente não estava. O modelo de funcionamento mental que seria “assimilável” pelo bebê, caso ela se visse na obrigação moral de ser um peito inesgotável, seria o de uma exigência sobre-humana (um superego exigente e sem consideração pela experiência).

Parece-me estar claro que quando trabalho parto do pressuposto de que existe a mente, ou uma personalidade, ou a alma (tentativas de nomear um mesmo fato apreensível, a despeito de não o ser sensorialmente) e que esta precisa ser respeitada.

IV

O cliente, um homem jovem, irrita-se intensamente quando lhe proponho a necessidade de entristecer-se, de deprimir-se, pois considero que estas vivências emocionais com as quais se recusa a fazer contato seriam fundamentais para que ele pudesse dar sentido a inúmeras experiências suas, sobretudo as que observo acontecer no consultório comigo ou diante de meus olhos.
A afirmação anterior pode parecer surpreendente, chocante ou absurda, principalmente se o vértice de trabalho for psiquiátrico ou medicamente orientado. Procurarei, não obstante, deixar claro como cheguei a formulá-la.
Para começar, destaco que os modos de o paciente tratar-me no consultório eram quase sempre muito altaneiros e com uma habitual falta de cortesia e educação. Muitas vezes seus modos eram francamente estúpidos. Procurei, usando toda minha paciência, mostrar-lhe a brusquidão de seu tratamento. Ele não conseguia reconhecer que houvesse qualquer truculência nas suas maneiras. A seu ver, tratava-me da forma mais normal que possa existir. Tentei lhe comunicar que aquilo que ele achava perfeitamente normal pudesse não ser assim percebido pelos outros, a começar por mim mesmo. Disse-lhe, inúmeras vezes, que eu estava tentando ajudá-lo a perceber algo de monta quando lhe contava o que fazia comigo, e que era algo que causava considerável desconforto e mal-estar. Assinalei que fora do meu consultório, dificilmente haveria alguém com condições de vivenciar o que eu experimentava com ele e que pudesse dizer-lhe, comunicar-lhe, o que se passava, para que ele pudesse verificar algo de sua responsabilidade que o levava a viver dificuldades e privações. Na sua vida de relações, agindo da mesma maneira que fazia comigo, e certamente ele não poderia ser um comigo e outro fora, as pessoas deviam reagir de forma irritada ou mesmo agressiva, àquilo que, pela minha experiência, devia também fazer com elas
Não só ele não admitia a possibilidade do que eu estava lhe dizendo, como ainda falava que eu só dizia aquilo para lhe causar constrangimento. Procurei conversar, de todas as maneiras que me eram acessíveis, e mostrar que seria mais tolerável, para ele, achar que eu era mais um a infernizar sua vida, da mesma forma que estava convicto ser isto o que lhe faziam todos os que o rodeavam, do que considerar sua responsabilidade por danos que estivesse causando a seus próprios interesses. Se ele percebesse o que eu estava procurando mostrar-lhe, ficaria triste, deprimir-se-ia, mas de um jeito diferente de deprimir-se daquele que está habituado, tal como uma criança que lamentasse ver todos os seus brinquedos quebrados e que, subitamente, percebesse que ela própria é que os havia quebrado e continuava fazendo isso. Seria triste fazer esse reconhecimento, não obstante, essa seria a única maneira de que isso pudesse deixar de ter uma continuidade. Somente a dor da tristeza do reconhecimento de sua responsabilidade nos estragos que efetuava poderia levá-lo a reconsiderar os seus modos e, eventualmente, se ele assim discernisse, reorientar sua conduta.
Este homem queixava-se profundamente de não lhe serem atribuídas funções de responsabilidade em seu trabalho e também de não ser levado a sério nas funções a que se pretendia. Tentei evidenciar-lhe, conforme a experiência que tive com ele, que parecia-me realmente pouco provável que lhe fossem atribuídas funções mais sérias, pois ele recusava-se a considerar, e, conseqüentemente, a assumir, qualquer responsabilidade que lhe era atribuída. Por exemplo: desde que começamos o trabalho eu lhe havia entregue a chave do meu conjunto para que pudesse entrar e sair sem precisar importunar-me nos meus atendimentos e sem precisar ficar aguardando a saída de um paciente anterior. Todavia, raríssimas foram as vezes que lembrou-se de vir com a chave, e quando chegava, tocava a campanhia. Dizia, com brusquidão e desdém, não querer saber de tomar conta de uma chave e de se lembrar de onde a colocava. Sua atitude revelaria não ter qualquer consideração por ou reconhecimento de minha existência real. Eu era apenas “algo”, uma coisa, que existia para atendê-lo e para satisfazer suas vontades. Quando eu lhe abria a porta, ele entrava tal como se fosse um príncipe para quem não haveria nada de mais natural do que um lacaio vir fazer essa tarefa. Entrava e deitava-se no divã e ficava sem nada dizer, esperando que eu fizesse algo para que sua situação mudasse. Quando falava, em geral irritado de precisar fazer esse esforço, também se queixava de seus colegas e familiares, na expectativa de que eu fizesse algo em relação a eles ou ao mundo, ou então que, tal como uma fada madrinha, de que eu o dotasse de todas as honras e distinções das quais ele se achava merecedor.
Quando tentei conversar sobre estes seus modos para comigo, enfrentei uma grande hostilidade, um verdadeiro ataque de grosserias. Procurei chamar-lhe a atenção para esta situação, daquilo que o via fazer comigo - para o que fazia com a chave e para sua reação quando lhe propunha refletir sobre sua maneira de tratar uma proposta de trabalho que lhe fazia, que era a de pensar sobre as minhas observações e proposições de esclarecimento. Ele reagia mais furioso não percebendo o que estas situações teriam a ver com suas dificuldades no trabalho e de desenvolvimento pessoal.
Disse-lhe que reclamava de que não lhe atribuírem funções de responsabilidade no trabalho, mas que eu via que ao lhe dar uma responsabilidade como a de tomar conta de uma chave, que ele recusava-se a assumi-la. Ele retrucava com violência dizendo não ver que relação teria entre aquilo que lhe dizia e seus problemas no trabalho, da desconsideração por parte de seus colegas.
Procurei chamar-lhe a atenção para a situação ali presente em que eu lhe propunha uma questão para ser pensada, o problema da chave, ou seja, que eu estava lhe propondo uma tarefa, um trabalho, que era pensar sobre este episódio, e que sem um instante sequer de reflexão, ele já a havia recusado, dispensado, desconsiderado, não tolerando o trabalho que lhe era proposto. Chamei-lhe a atenção para o paralelo que haveria entre as situações relatadas e as situações ocorridas no consultório. Procurei esclarecer que se ele é alguém que se recusava a assumir a responsabilidade por cuidar de uma chave, que é algo que se dá para um jovem quando ele fica mais velho, a chave da casa, por se considerar que ele teria suficiente responsabilidade para cuidar disso, que ficaria difícil para seus colegas e chefes que deveriam observar este tipo de atitude nele, passarem para ele atribuições que requereriam responsabilidade e disposição para reflexão e trabalho.
O paciente retrucou que eu não lhe dizia o que fazer, não lhe dizia como resolver os seus problemas, que não aprendia nada comigo. Disse-lhe que efetivamente não lhe dizia como resolver os seus problemas, que eu procurava lhe mostrar quais eles seriam para que pudesse pensar sobre eles. No entanto, quando lhe propus isto ele reclamou de que não lhe dizia o que fazer, como resolver os problemas que considerava serem os reais, da sua vida fora do consultório. Novamente tentei fazer um paralelo mostrando que ele reclamava de só lhe mandarem fazer tarefas sem importância e sem relevância. Disse-lhe que considerava que isto devia ser assim mesmo, pois ele sendo uma pessoa que não se dispunha a pensar sobre os problemas que lhe eram propostos e apenas querer que lhe dissessem como se deveria proceder, só poderia ser mesmo um “pau mandado”. Ninguém iria colocar nas mãos dele tarefas que pudessem requerer um discernimento momentâneo e que exigissem uma disponibilidade para pensar o assunto na hora, sem ter outro alguém para lhe dizer o que fazer.
Num primeiro momento o paciente até teve algum reconhecimento do que lhe propunha, e disse ser verdade o que ouvia, que verificava o que estava lhe dizendo, mas em seguida, houve uma reviravolta e ele disse não saber para que toda aquela conversa serviria; que não conseguia entender o que eu pretendia, que não via sentido em nada do que lhe falava.
Comentei com ele que a única possibilidade de ele chegar a ver sentido no que lhe propunha considerar seria ele tolerar a experiência de tristeza e depressão pelo que percebesse, caso contrário não poderia mesmo ver o que lhe mostro.
Ele reagiu com violência dizendo que todo mundo sabia que tristeza e depressão não serviam para nada, que ninguém queria viver isto e que até há uma porção de remédios que são feitos para que não se viva tais sentimentos que não servem para nada.
Considerando-se ser isso o que ele pensava, indaguei-lhe o que o impedia de tomar os ditos remédios. Ele reagiu com causticidade dizendo que não acreditava em remédios. Prosseguiu dizendo que já era deprimido, que já vivia se sentindo deprimido e triste, e que isto não servia para nada.
Disse-lhe que ele era mesmo deprimido e triste, mas não com a depressão e a tristeza que eu considerava úteis que ele vivesse. A tristeza e a depressão que eu pensava que seriam necessárias que ele experimentasse apareceriam a partir da verificação de sua responsabilidade por aquilo que lhe acontecia enquanto que estas das quais ele se queixava decorriam de uma vivência de impasse e falta de esperança que estariam associados à sua maneira de funcionar que realmente obstruíam todas as suas oportunidades. Ele só percebia, de forma esmagadora, a falta de perspectiva, de esperança – não a sua responsabilidade neste contexto. (Ou ele teria uma noção muito peculiar do que seria ser responsável). Ele vivia um tipo de depressão, que poderia se encaminhar para um caso psiquiátrico de depressão, por não poder suportar o outro.
Quando parecia, mais uma vez, que ele ia fazendo algum contato com o que lhe demonstrei, ele voltou a reagir de modo brusco e tudo isso foi reduzido a cacos e o trabalho precisa ser retomado do início, num esforço de Sísifo de minha parte.

Do ponto de vista médico ou de possíveis outras abordagens psicoterápicas, esta depressão que ele sofre precisaria ser atacada, ele precisaria ficar livre dela. Do meu ponto de vista, ela é correspondente a uma percepção realista de falta de perspectiva e de esperança. Esta depressão, se considerada e respeitada, poderia levar a pessoa a pensar sobre o que lhe sucede. Como a meta seria a de livrar-se dessa “doença” fica perdido o vértice em que ela seria indicativa de uma situação real a ser considerada e trabalhada. Foi isso o que a meu ver possibilitou Freud ver o que nenhum de seus contemporâneos foi capaz. Ao invés de tentar livrar o paciente daquilo que o atormentava, ele se dispôs a verificar que sentido aquilo teria, antes de qualquer outra iniciativa.
Quero destacar que considero ambos os tipos de depressão como normais – nenhum seria patológico, pois corresponderiam a apreensões da situação vivida pelo analisando. O segundo tipo, aquele que o paciente já vive, implicaria uma situação em que uma pessoa se deprime por estar perseguida – encurralada em um estado mental que efetivamente aniquila toda e qualquer esperança que possa ter. Este estado mental leva o paciente à inanição mental. O sofrimento vivido é algo natural. A procura de eliminar pura e simplesmente o estado de sofrimento privaria-o de acesso àquilo que o alerta de que algo não vai bem, ou melhor, de que algo muito sério está realmente acontecendo. Seria o equivalente a sedar, anestesiar, o paciente e achar que deste modo seu mal acabou, sem considerar que a dor correspondente a um sinal de que algo está se complicando seria um modo normal e necessário para que possa tomar ciência de seu estado, e, caso tenha condição de pensá-lo, efetivamente tratar de seu problema. No que tange ao paciente, a questão seria a de intolerância a contato com dor que o impede de reconhecer e cuidar do que é preciso. Quanto mais tenta se livrar do sintoma, acreditando ser este o problema, mais difícil fica para reconhecer e lidar com o real sofrimento, num círculo vicioso infernal.
Ao psicanalista caberia manter o vértice psicanalítico, pois a psicanálise seria a única oportunidade de se poder considerar os “motivos” do fenômeno. O trabalho do psicanalista não é o de aliviar os pacientes de suas dificuldades, mas a de ajudá-los a desenvolver suas capacidades de pensá-las, tornando o psicanalista, em última instância, dispensável.
O vértice psicanalista que estou considerando e com o qual trabalho é aquele que privilegia o desconhecido – que equivale e também amplia a idéia de Freud do Inconsciente – que, na sua essência, é aquilo que não se sabe.

IV - Expectativa de melhora e cura e algumas das conseqüências

Um dos problemas de haver uma expectativa de melhora e cura do paciente é este último ver-se levado a produzir a melhora e cura ansiada pelo analista, com o intuito de agradá-lo e de ser por ele aceito. O paciente percebe intuitivamente, mesmo que não saiba disso, as expectativas de cura e melhora por parte do analista e o contentamento por parte dele quando as apresenta. O paciente pode tornar-se um expert em produzir cura e melhoras que deleitam e envaidecem seu analista. Em geral, essas melhoras aparecem nos relatos de como a sua vida melhorou fora do contexto analítico. Por exemplo, diz que casou, passou a tratar bem os filhos, arranjou um bom emprego, passou a ter consideração pelos outros, deixou de ser egoísta, não trai mais o marido ou a mulher, e uma série de outras mudanças, em geral intimamente ligadas a valores morais estabelecidos. Todo paciente, por mais psicótico que possa ser (ou muito pelo contrário, principalmente se for psicótico) intui e capta nas profundezas da mente do analista quais são os seus valores e seus anseios e pode, ao verificar as expectativas do analista, passar a produzir em larga escala aquilo que ele (analista) espera sem mesmo se dar conta. A análise do analista é também crucial para que o analista conheça intimamente seus valores e preconceitos, de maneira a ter reconhecimento de suas expectativas e desejos, podendo afastá-los quando os percebe, ou afastar os seus desejos de ver realizados suas expectativas e aceitação de valores que lhe são próprios, mas que possam ser alienígenas para o paciente.
O analista que ingenuamente acreditar nos relatos do paciente sobre o que acontece na sua vida fora de análise e não se mantiver atento àquilo que realmente faz o analisando em seu consultório e na relação que estabelece consigo, será envolvido pelas produções do analisando e acreditará que as coisas possam estar caminhando muito bem e que tem um paciente que é muito empenhado e colaborador. O paciente (ainda que não o saiba ou o perceba) está mesmo empenhado em produzir aquilo que seu analista espera dele, o que é muito diverso de estar desenvolvendo suas capacidades mentais, que por sua vez, poderiam levá-lo a assumir posturas e valores que possam ser muito diversos daqueles do analista, mas que sejam genuinamente seus.
Em recente situação da minha clínica observei um paciente que tão logo eu lhe dizia algo ele imediatamente já se mobilizava para mostrar-me sua concordância com o que eu lhe propunha. Na minha observação, contudo, verificava que não havia tido um mínimo de tempo suficiente para “digerir” ou verificar efetivamente as proposições que eu havia feito. Também não verificava realmente, nas suas concordâncias, algo que tivesse relação com aquilo que eu havia lhe proposto pensar. Era aparentemente a mesma coisa, mas não de fato. Muitas vezes seus movimentos eram para me mostrar que estava livre de certos preconceitos de grupos de que faz parte, pois achava que isso era o que eu esperava dele. Não obstante, ao esforçar-se para mostrar-se emancipado dos supostos valores “arcaicos” daquele agrupamento, eu o percebia submisso e aderindo aos valores que atribuía a mim, com os quais confundia-me e acreditava que eu esperava que aderisse. Penso que ao procurar mostrar-se emancipado, permanecia igualmente submisso, apenas trocando a forma externa da autoridade. Se eu não me der conta dessa situação e assumir o papel que me é proposto, posso tornar-me uma aparente não autoridade muito autoritária. Uma maneira meio simplificada de ver isso acontecer, que não era exatamente o caso aqui, dá-se quando o analisando procura mostrar que abandonou o “obscurantismo atrasado e moral” de alguma religião que tem para assumir uma religiosa não religiosidade que seria mais “moderna” que acredita ser a de seu analista. O que não desenvolve, de fato, é um verdadeiro discernimento seu. O analista “moderno e descolado” pode achar que seu analisando evoluiu de uma situação medieval para outra mais desenvolvida e livre, sem verificar que o status quo mental do analisando não sofreu qualquer alteração mental.
Com o paciente em questão tive a impressão (que comuniquei a ele) de que ele acreditava que todos os recursos dos quais dependia para sobreviver estavam fora dele, num determinado grupo, ou em alguma autoridade fora dele. Tal como um bebê recém nascido estava desesperado para ser adotado, para que eu o adotasse, e a despeito de ser um homem maduro e, pelo que diz, supostamente bem estabelecido profissionalmente, acredita, no seu íntimo, que se não for assimilado, adotado, aceito, por mim, ou por qualquer outro grupo que seria o real possuidor de todos os recursos necessários à sobrevivência, morrerá à míngua. Dessa maneira, ali comigo, esforçava-se, mesmo sem realmente entender o que eu estava lhe dizendo, para mostrar que compartilhava do que cria serem minhas idéias e meus valores. Se fossem outros os valores, ele também faria a mesma coisa, pois o discernimento sobre as idéias expostas não teria qualquer importância, apenas poder aparentar que as idéias da autoridade de outrem ou de um grupo são igualmente as suas é que teria relevância, pois disso dependeria, para ele, sua aceitação, assimilação, pela autoridade e pelo(s) grupo(s), de que dependeria sua sobrevivência imediata. Assim como seria com um bebê recém nascido, ele desesperava-se para se ver e ser “importante” para mim, para o seu grupo, ou para os seus pais. Um bebê realmente precisaria ser importante para os seus pais ou para de quem ele dependa. Somente depois de muito conversar e de mostrar-lhe essa situação por diversos ângulos é que parece que ela fez realmente algum sentido para ele e levou-o efetivamente a refletir sobre seu estado de mente e as conseqüências deste.

V - O Pânico

As síndromes do pânico estão na moda, na ordem do dia. A meu ver, tais quadros são velhos conhecidos dos psicanalistas; são aquilo que Freud chamou de histerias de angústia ou fobias, com nova roupagem ou nomenclatura que dão a impressão de que se trata de uma coisa nova. No que diz respeito à prática psicanalítica na abordagem dessas situações, considero que ao manter-se um enquadre de trabalho que seja fiel ao modelo médico corre-se o perigo de se perder o vértice psicanalítico e o diferencial que este vértice poderia trazer.
Mantendo-se o viés médico curativo, as situações de pânico são abordadas como doenças que precisariam ser extirpadas. O pânico é visto com algo anormal que não teria lugar. Há a con-fusão do sintoma com o próprio problema. O sintoma também é percebido como algo errado, que não deveria existir. Considero ser este um sério problema, pois, a meu ver, o sintoma, mesmo do ponto de vista médico, seria algo adequado e certo – ele indica que um problema está ocorrendo e que sua manifestação pode ser o que há de mais adequado na vigência do problema.
Não estou advogando que psicanálise seja panacéia e que dê conta de tudo quanto é situação. Não considero que pessoas em meio a intensas crises de pânico que mal possam sair de suas casas ou de suas camas possam prescindir de medicamentos, ou de algum tipo de ajuda que permita um mínimo de mobilidade. Considero contudo que tais abordagens são paliativas.
Na minha prática clínica encontrei várias pessoas que manifestavam as famosas “síndromes de pânico” e que declararam amiúde, após serem medicadas, que sentiam que alguma coisa punha em um certo estado de suspensão aquilo que viviam, mas que a própria coisa, apesar de aparentemente desligada ou em suspensão, poderia ser reativada a qualquer instante. O medo persistia. Estariam, até um certo ponto, suspensas apenas as reações que esse medo as levaria a ter. Essas pessoas também se queixam de que os medicamentos as deixam apáticas e sem ânimo ou sem condições mínimas para as outras atividades que precisam empreender na vida. Além do mais, há o problema de após um certo tempo, o medicamento começar a perder o efeito, precisar ser trocado, ou suas doses passarem a ser cada vez maiores, trazendo outras conseqüências secundárias.
O que verifiquei nos meus atendimentos é que as pessoas que se queixam de viver crises de pânico, em geral, apresentam um modo de lidar com aquilo que as angustia que tem como resultado viverem o pânico – um pânico com motivação real.
Na minha observação, no contato que têm comigo, o que vejo amiúde nelas é uma atitude de partir para a ignorância (tanto no sentido de não querer saber ou ter qualquer contato com o que lhes desagrada, como também no de reações que tendem a ser grosseiras e violentas), a toda tentativa de colocá-las em contato com aquilo que percebo angustiá-las ou contrariar suas expectativas de como as coisas deviam ser. Uma pessoa que, para não perceber o que a desagrada ou a angustia, fura os próprios olhos, estoura os tímpanos, e rompe o contato com qualquer estímulo que a informe daquilo que não quer saber, fica numa situação muito complicada. Imaginem-se cegos, surdos, sem tato, olfato ou qualquer outra percepção que lhes indique o que estaria acontecendo às suas voltas em um ambiente – ou ainda, caso seja mantida a percepção dos estímulos, que todo e qualquer sentido emocional que estes estímulos pudessem mobilizar seja atacado, de modo que vejam os estímulos mas que não mais consigam dar sentidos a eles. Considerando tal situação, penso que entrar em pânico é a reação mais natural possível. O pânico, neste contexto, é uma reação saudável! É o (que restou do) bom senso da pessoa se manifestando. Atacá-lo ou querer privar a pessoa dessa reação é atacar o que restou de saudável e pertinente nessa pessoa. De outros pontos de vista mais corriqueiros o pânico seria algo errado e doente que precisaria ser expurgado. Do ponto de vista psicanalítico que estou aqui propondo, é uma manifestação muito adequada e que indicaria a necessidade do paciente rever os modos que utiliza para lidar com aquilo que o angustia.
Partir para a ignorância, negar a realidade odiada, ou negar os sentidos daquilo que se percebe, foi provavelmente um recurso primeiro, utilizado na falta de encontro de outras possibilidades. Negar a realidade quando ainda se dispõe, mesmo que de maneira precária, de adultos (pais ou responsáveis) para enfrentar os fatos da vida é um caso, negar os fatos quando já se está numa situação em que é necessário enfrentar sozinho os fatos, é outra história. O que pode ter sido mais ou menos útil numa etapa da vida, para enfrentar temores, ou desconfortos, sentidos como intransponíveis, ou pelo menos indesejáveis, pode, noutra etapa, constituir-se num prejuízo.
O trabalho do analista não seria o de indicar o pânico como o problema a ser solucionado. Pelo contrário, seria o de indicar que o pânico é a reação adequada às “soluções” dadas pelos pacientes às suas angústias. Isto sendo verificado pelo paciente, o analista, com sua condição supostamente mais desenvolvida para ficar em contato com angústias e desconfortos, poderia ajudar o paciente a desenvolver suas capacidades para conviver, aceitar e assimilar situações de mais angústia, desconforto e frustração com que se defronte. A pessoa mais desenvolvida emocionalmente não é a que se livrou de angústias e frustrações, mas é aquela que tolera níveis cada vez maiores de angústias e frustrações. Somente esta condição a habilita a lidar com as dificuldades da vida. Quanto mais alguém possa se recusar ou se ver incapaz de lidar com os sentimentos mobilizados por adversidades ou por frustrações (que são os fatos serem diferentes de nossos desejos), mais inapta estará para lidar com as situações da vida real. Quanto mais ela se vir (sem se dar conta) nessa situação, mais tenderá a entrar em pânico quando se encontrar diante dos fatos da vida que não pode evitar, da mesma forma que pode reagir um bebê recém-nascido que não tem experiência de vida e nem recursos desenvolvidos para lidar com o que lhe chega. Ao analista não cabe poupar o paciente. É de se poupar do que considera ser frustrante e desagradável que o paciente padece. Por outro lado, tornar-se capaz de reconhecer as adversidades e frustrações não é garantia de imunidade quanto a depressão, a tristeza, ou a vivências de desamparo. O real desenvolvimento implicaria na possibilidade de aceitação e assimilação destas vivências na vigência das adversidades sem que necessariamente tais sentimentos impeçam o indivíduo de continuar pensando e funcionando (e, eventualmente, perceber oportunidades que lhe sejam favoráveis).
Não poupar o paciente não implica em ser violento com o analisando ou de querer empurrar-lhe “verdades” goela abaixo, mas implica em ajudá-lo a confrontar-se com os fatos que sempre se recusou a entrar em contato e com tudo o mais que ele possa achar inaceitável, porque não está em conformidade com suas expectativas e desejos. Para que isso seja possível, o próprio analista precisa ser alguém que tolere angústias e adversidades – a começar na sua própria prática clínica. O analista não precisa apresentar-se como um herói ou um super-homem, mas precisa ser alguém que ao se ver diante de situações penosas e adversas, possa aceitar-se no seu sofrimento e permanecer respeitando-se mesmo diante de sua ignorância e insuficiência, aguardando, num estado de fé (conforme a definição de Bion em Attention and Interpretation), o surgimento de alguma evolução.

VI - A questão da verdade e da honestidade

Freud já dizia, desde o início, que psicanálise é inseparável de verdade e do amor à verdade. Bion (1970) complementou escrevendo que a verdade é inseparável da saúde mental e é indispensável para se ter saúde mental. Penso ser este o fator limitante para a prática e o benefício que possa advir de uma psicanálise. O analisando precisa ter um mínimo de interesse na verdade para que esse trabalho possa ocorrer. Quanto ao analista, para que possa praticar psicanálise, e não qualquer outro tipo de psicoterapia suportiva, o seu vértice precisaria ser o da verdade e da honestidade com o paciente, visto ser a falta de verdade psíquica que levaria o paciente ao estado de penúria que o faz buscar ajuda.
Muitas vezes ouço comentários de que não se deve dizer isso ou aquilo para um paciente, pois ele não agüentaria. Primeiramente, quero argumentar que considero ser uma grande presunção eu achar e decidir o que uma pessoa vai ou não agüentar ouvir ou perceber. Esse tipo de problemática fica mais claro quando pensamos em situações de adoção em que os pais consideram que não podem dizer aos filhos que são adotados. Todas as pessoas que trabalham na nossa área já estão cansadas de saber como essa decisão acaba levando a complicações consideráveis na mente dessas crianças adotadas. De alguma maneira elas sabem que algo está sendo ocultado, que alguma coisa não está sendo dita, que há mentira no ar – mentira, que como ressaltou Bion, é veneno para a mente. Além do mais, aquilo que não é dito, que seria um fato da vida – a adoção, aqui no caso – passa a ser concebido, tanto por quem não diz, como por quem fica sem acesso à verdade, como alguma coisa que seria realmente terrível, hedionda – e por isso mesmo precisaria ser escondida. Um fato real passa a ser um estigma – uma coisa que acontece passa a ter a equivalência de uma mancha, uma nódoa da personalidade da criança – destaco que não seria uma nódoa NA personalidade, mas na ocultação, a adoção seria vivida como uma nódoa DA personalidade dela – tanto pelos pais quanto por ela mesma.
Lembro aqui que na tragédia de Édipo seu drama se desenrola a partir de uma verdade que lhe é ocultada e da qual ele é poupado pelos pais adotivos.
Da mesma forma, considero que tudo que um psicanalista perceba e que oculte de seu paciente porque considera que ele não poderia suportar perceber acabaria por se constituir numa situação similar àquela da adoção que acabei de mencionar. O paciente de alguma forma intui que algo que o analista sabe, não lhe diz. Aquilo que em princípio seria feito pelo analista para poupar o seu paciente acabaria por estressá-lo ainda mais, aumentando sua perseguição, pois ele intui que algo está sendo ocultado, que a conversa não é totalmente franca. Por outro lado, a fala franca do analista pode, à primeira vista, parecer uma brutalidade, mas por sua vez, quando o paciente verifica que o analista é honesto com ele, e que dele nada oculta, passa, segundo minha experiência, a sentir-se mais confortável e tranqüilizado, por verificar que não há “esqueletos escondidos no armário”. Ao constatar que a conversa é realmente sincera, ele perceberia estar sendo verdadeiramente respeitado na sua integridade – não está sendo percebido como bobo ou incapaz, para dizer o mínimo. Pressupor, a priori, que o analisando não é capaz de entrar em contato com os fatos seria fazer pouco caso dele. Ao ser sincero, o analista também assinalaria a crença de que o paciente possa enfrentar os seus problemas de forma diversa da que vem fazendo – toda neurose ou psicose são, em última instância, distorções ou negações da realidade tida como intolerável ou inaceitável. Se o analista considera que o paciente é realmente alguém sem recursos, seria o caso de tomá-lo em análise? Penso que psicanálise não cria recursos em quem não os tem, apenas pode desenvolver os recursos existentes, porém não evoluídos.
Situação similar pode ser vista na relação de médicos e pacientes que têm doenças graves. Acho desastroso e desrespeitoso quando médicos e familiares decidem que podem ocultar do paciente aquilo que eles acham que o paciente não poderia suportar entrar em contato. É, a meu ver, uma afronta ao direito e à autonomia do paciente. De qualquer maneira, em tais circunstâncias, a realidade acaba por se impor. Quando isso acontece, pode ser que a pessoa que ficou iludida, por exemplo, numa doença letal, sinta-se muito prejudicada por não ter tido a oportunidade de decidir por si mesma, o que gostaria de fazer dos últimos meses, dias ou horas de sua existência. Quando finalmente a realidade ocultada se impõe, pode não mais haver o que fazer.
O Dr. José Longman, costumava dizer que análise não é para quem quer fazer poupança – não é para quem quer ser poupado. Não haveria desenvolvimento possível para quem quer facilidade e ser poupado. Para haver crescimento um indivíduo precisaria usar os recursos que dispõe; se eles não forem usados, não se desenvolverão.
Freud e Klein não pouparam seus pacientes daquilo que consideravam verdadeiro. As repercussões sofridas por eles por não abrirem mão de suas sinceridades foram consideráveis. Penso que se costuma esquecer, quando alguém diz: “como se pode dizer isso a um paciente? Ele não vai agüentar!” – o que Freud e Klein, por exemplo, ousaram dizer a seus pacientes e a seus contemporâneos de prática científica. Em plena era vitoriana Freud foi capaz de falar a donzelas e a senhoras puritanas, e a senhores da mais estrita reserva moral, sobre seus desejos de matarem o pai (ou a mãe) e de dormirem com o genitor do sexo oposto – quando não era o do mesmo sexo. Acho que hoje em dia costuma-se esquecer do tamanho do impacto que isso devia ter na época de Freud, de como isso devia chocar e horrorizar os seus ouvintes – tanto pacientes quanto colegas. Nem por isso ele deixou de dizer o que pensava, pois, como assinalei desde logo, Freud não distinguia a psicanálise da busca da verdade (conhece-te a ti mesmo!).
Conseguimos lembrar-nos do primeiro impacto das nossas leituras de Klein? Lembramos que o que ela escreve é o que dizia para seus pacientes?
Não estou advogando sermos rudes – há formas e formas de se falar com uma pessoa. Nunca se deve esquecer que a pessoa com quem estamos está sofrendo, muitas vezes estaria em “carne viva”. Nem por isso podemos deixar de fazer os procedimentos necessários para alguém que está em carne viva – mas não devemos esquecer tal condição. É necessário também se achar uma maneira de falar, que o ouvinte possa ser capaz de compreender o que dizemos. Não dá para falar com uma pessoa muito concreta de uma forma muito metafórica ou abstrata (por outro lado, se a pessoa for excessivamente concreta ou pouco inteligente, uma análise pode não ser viável). É preciso que se busque a language of achievement, como diz Bion, a linguagem de êxito ou de alcance, como se propõem as traduções em português dessa expressão. Penso que podemos aguardar para dizer algo para o paciente enquanto considerarmos não ter achado uma maneira clara e evidente de expressarmos aquilo que almejamos comunicar, ou enquanto verificarmos que nosso julgamento possa estar comprometido por turbulência emocional não digerida por nossa parte ou contaminado por preconceitos de alguma espécie. O que dizemos também não pode ser acusação de ordem moral e religiosa. Penso que cabe-nos apresentar fatos para que os pacientes possam pensar a respeito e não acusações de conduta inadequada (afinal de contas, quem pode decidir o que seria isso, salvo as pretensas autoridades morais?). Penso que Freud ao dizer a seus pacientes sobre a situação edípica não os estava acusando dela – estava apenas oferecendo elementos nunca percebidos ou pensados pelos pacientes para que, ao deles tomarem ciência, pudessem pensá-los, elaborá-los. Elaborar também não implica em encaminhar para algum tipo de conduta, comportamento ou funcionamento, que seria adequado, ou supostamente condizente com uma estabelecida normalidade. O resultado da elaboração deveria ser uma incógnita para o analista (assim como para o analisando) e não deveria haver a prioris sobre isso, pois, o que faríamos, se houvesse o que deve resultar, não mais seria psicanálise, mas algum outro tipo de atividade psicoterapêutica, médica, pedagógica ou pregação moral e religiosa.
Não considero haver um problema uma pessoa receber catequese ou orientação pedagógica, ou mesmo psicoterapia com características pedagógicas, se for isso o que tiver procurado ou for isso que realmente almeja obter. São abordagens que permitem muita gente se organizar e funcionar de alguma maneira em suas vidas, podem inclusive ser muito úteis para quem as procura. Ao analista caberia esclarecer seu cliente, tão rapidamente quanto possível, a diferença entre essas abordagens e aquilo que visa a psicanálise – a autonomia do paciente, por meio do desenvolvimento de sua capacidade de pensar, o que só seria possível se o foco estiver no desconhecido de sua realidade psíquica. Isto deveria ser feito na própria atuação prática do analista, de maneira a ir deixando claro o seu vértice e o que privilegia. Cabe ao analisando decidir se se interessa ou não por aquilo que o analista lhe propõe – mesmo quando se trata de crianças, como bem ressaltou Bion. Ao analista caberia oferecer a quem o procura aquilo que seria peculiar à psicanálise e que ele não encontraria em qualquer outro lugar. Se o analista fizer algo diferente de psicanálise, poderá estar privando quem a ele recorreu, daquilo que se propõe, e que, na prática, não acreditaria realmente ter alguma utilidade.
O alívio que possa advir de uma psicanálise, mas que não deveria ser a meta por ela buscada (o alívio), viria com o desenvolvimento da capacidade de pensar do paciente que o habilitaria a ver as questões da vida com que se sente em impasse e com as que venha a se defrontar a partir de diferentes ângulos de observação, o que o dotaria de discernimento próprio, possibilidade de escolhas e autonomia. O desenvolvimento da capacidade para pensar evoluiria a partir do contraponto proposto entre as convicções que tem o analisando de como as coisas são e aquilo que é percebido pelo analista a partir do ponto em que se encontra de onde poderia ver o que o analisando não pode do ponto que ocupa. O analista pode contrastar o ângulo de percepção do analisando com o seu – mostrando aquilo que percebe da situação que compartilha com o analisando que este último não percebe. Se o analisando suportar este contraste, poderá verificar que haja mais do que um ponto no universo de onde poderá olhar para a questão que o aflige e, eventualmente, perceber alternativas para aquilo que vive como impasse se considerar a existência de diferentes perspectivas que possam mudar completamente a configuração daquilo que via inicialmente. No vértice pedagógico, há a manutenção da idéia de uma autoridade, portanto de um único ponto de vista a ser considerado, enquanto que no vértice didático, que seria o de toda psicanálise, não só das assim denominadas análises didáticas, seria possível o desenvolvimento da noção de autoridade (e responsabilidade) do próprio analisando.
Para não ser autoritário ou brutal, ao mesmo tempo que franco, o analista precisa ser capaz de compaixão e uma maneira de isto se tornar viável é por meio de sua própria análise – se esta for profícua e profunda, dificilmente ele será capaz de atirar a primeira pedra ao perceber aquilo que há de humano no outro.
De qualquer maneira, o analista ser capaz de compaixão e de procurar uma linguagem que possa ser acessível e respeitosa com seu paciente, sem porém lhe faltar com a verdade, não garante que tenha sucesso no seu esforço de comunicação. O interesse e consideração pela verdade não podem ser apenas seus – é preciso que isso também exista no paciente. Para que o analista possa ser ouvido, é preciso que ele encontre, em algum lugar, um interlocutor no seu cliente que esteja disposto a ouvi-lo e que reconheça a importância da honestidade.
Vale igualmente ressaltar que Bion chamou a atenção para a questão da dogmatização das teorias psicanalíticas e também para os intuitos de tornar a psicanálise e os psicanalistas respeitáveis, autoridades conforme um establishment. Ele, por sua vez, prosseguiu seu trabalho investigativo para além daquilo que era considerável aceitável e estabelecido, e acabou tachado de louco por muitos de seus próprios colegas.
Psicanálise não serve para produzir cidadãos respeitáveis. Se análise é para ajudar uma pessoa a se encontrar consigo mesma, não deve ter a prioris do que isto deva ser e, muito menos, que ela deva vir a pensar e funcionar conforme qualquer valor pré-estabelecido. O respeito pela autonomia do paciente deve levar em conta os desenlaces e encaminhamentos que ele possa querer dar à sua vida, não importa quais sejam. Como bem dizia Bion, se um sujeito for um ladrão por natureza, psicanálise irá ajudá-lo a tornar-se um melhor ladrão. Considero que a única possibilidade de uma pessoa ter acesso a um certo grau de felicidade possível na vida é aquela em que possa sentir-se suficientemente autônoma, livre de autoridades de qualquer sorte (incluindo a do analista), para viver em conformidade com suas próprias aptidões, valores e anseios. A análise pode permitir que uma pessoa verifique quais esses realmente sejam, durante o percurso da experiência analítica. Isso não deve ser algo que se saiba de antemão o que deve ser – caso contrário, como já disse, estaríamos fazendo algum tipo de doutrinação (e, conseqüentemente, de violência contra a autonomia do paciente), e não psicanálise. O respeito principal que uma pessoa necessitaria seria o dela por ela própria. Este auto-respeito é que teria, a meu ver, permitido que um Freud, uma Klein, e um Bion, permanecessem fiéis a si mesmos a despeito de serem percebidos como outsiders pelos grupos dos quais fizeram parte. Freud tratado como uma aberração por chamar a atenção para o Édipo e para a sexualidade infantil – aquilo tudo só poderia ser fruto de uma mente degenerada. Se sua preocupação fundamental fosse a de ser um cidadão respeitável, antes de mais nada, teria feito como Breuer, e sucumbido ao Establishment, tal como seria o “normal” de se esperar.Não obstante, também penso que a única maneira real de uma pessoa desenvolver verdadeira consideração pelos outros, uma ética própria e genuína, tal como advogava Sócrates, segundo Cornford, em contrapartida aos valores morais que são impostos de fora pra dentro, é ela ter real consideração por si mesma, por sua autonomia e opções, sejam elas quais forem. Freud e a psicanálise só se tornaram efetivamente respeitados porque ele teve real consideração por si mesmo e por seus pensamentos a despeito de serem, não só naquela época, mas ainda hoje, percebidos como desviantes, perturbados e perturbadores.
Realço também o problema do anseio da psicanálise tornar-se agradável, respeitável, normatizante e na norma. Associado a esses três primeiros fatores estaria o interesse de ser comercialmente rentável, um bem de consumo de massas. Essa conjunção, caso prevaleça, coloca-la-á num trajeto que levará a seu aniquilamento, tal qual tudo aquilo que é um bem de consumo de massa. Como destacou Hannah Arendt, todo produto para consumo de massa tão logo é consumido é descartado, porque não tem maior consistência e serventia, salvo a de um entretenimento passageiro e leviano.

Referências

Arendt, H. A Crise na Cultura:sua importância social e política.In: Entre o Passado e o Futuro.São Paulo, Ed. Perspectiva, 2000.
Bion, W.R. (1963) Elements of Psycho-Analysis. In: Seven Servants: Four Works by Wilfred R. Bion. New York, Jason Aronson, 1977
Bion, W. R. (1970) Attention and Interpretation. In: Seven Servants: Four Works by Wilfred R. Bion. New York, Jason Aronson, 1977.
Bion, W.R. (1978?) Supervisão 19**. Transcrita por José Américo Junqueira de Mattos, da SBPSP.
Bion, W.R. (1992) Cogitations. London, Karnac Books, 1992.
Cornford, F. M. (1932) Antes de depois de Sócrates. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
Freud, S. Complete Works. Standard.Edition. Londres, The Hogarth Press, 1978
Jones, E.(1961) Vida e Obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1975.
Klein, M. The Writings of Melanie Klein, vols. I, II, III, IV. Londres, The Hogarth Press, 1975

Claudio Castelo Filho
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♣ Analista Didata da SBPSP, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Doutor em Psicologia Social pela USP e Livre Docente em Psicologia Clínica pela USP.
Ver Bion, 1963, sobre o funcionamento em –K, e também Klein em que o recrudescimento da posição esquizo-paranóide se dá para evitar a dor e os remorsos da posição depressiva.
Sei que esta é uma situação paradoxal. O paciente precisaria tolerar o que não suporta para poder verificar algo relevante. Contudo, a presença do analista poderia ajudá-lo a considerar a possibilidade de rever suas crenças quanto ao que é ou não intolerável. Algo que não seria suportável na tenra infância pode sê-lo na vida adulta, ou algo que possa ter sido insuportável de aproximar-se no seu meio familiar, para sua mãe ou para seu pai, poderia ser possível comigo. De qualquer maneira, há um ponto que só depende do paciente, que seria a sua decisão de aventurar-se por um terreno que não lhe é familiar. Esta é uma situação que só o analisando pode decidir e assumir, não importa o quanto seu analista possa pensar que lhe seria favorável. Se o analisando não se dispuser a dar tal passo, não haveria o que o analista pudesse fazer. No que diz respeito ao caso aqui mencionado, a intolerância ao reconhecimento de um forte sentimento de inveja também seria um importante fator na produção do quadro observado.
Aqui pode-se verificar que não importa que abordagem eu faça, sempre estarei “errado”, mesmo com o prejuízo da própria coerência do paciente, pois ele afirma uma coisa e em seguida o contrário dela, dando um tranco em sua mente, arrebentando-a. Essas rupturas mentais efetuadas para evitar a depressão (no sentido de Klein) estariam na raiz de seu embrutecimento e estupidez.
Ver Bion, 1970, p. 102.
Bion, 1992, p.122.
Bion 1970.
Bion, 1970, cap. 11.
Analista Didata da SBPSP, falecido no início dos anos 1990.
Freud, S. Complete Works. Standar.Edition. Londres, The Hogarth Press, 1978
The Writings of Melanie Klein, vols. I, II, III, IV. Londres, The Hogarth Press, 1975.
Bion, 1970, p.125.
Supervisão Número 19**
Supervisão 19** op. cit.
Ver Jones, E., 1961, pp. 278/279.
Cornford, F. M. (1932) Antes de depois de Sócrates. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
Arendt, H. A Crise na Cultura:sua importância social e política.In: Entre o passado e o futuro.São Paulo, Ed. Perspectiva, 2000.


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